corpo ardente

 

Suave e liberto, o corpo arde.

Tão quente irradiando,

como estrela por nascer

uma espécie de calor aureolar -

sempre é assim, depois de dançar.

Soubeste de músculos 

que antes não tinhas.

Experimentaste novas dores.

Desabamentos, desequilíbrios,

ínfimos voos, micro-vertigens,

muralhas, quebras, tremuras.

Descobriste no espelho uma altivez inédita,

outro rosto, outras figuras

- o que é isto? -

e dissolveste no esforço muscular

na tripla concentração absorvente

entre o corpo, a ideia e o som,

dissolveste aí - nesse estranho lugar

o coração.

Sim, moeu-se grão a grão 

esta angústia pungente de existir

e de amar sem nenhum futuro.

Moeu-se até ao pó a angústia,

o corpo em água - 

e o coração brandimo-lo

como um feixe de varas flexíveis

contra a pedra até que dele

nada sobrasse.

Onde estás agora, coração?

Na suave paisagem noctívaga 

que agora se entrevê

dançante pelos vidros do carro

há esta coisa meio criança 

de ter um interesse desprendido 

e lúdico em todas as coisas.

O que é isto?

(De súbito, tanta leveza.)

Estás só de passagem,

mas tudo o que vês é interessante.

Parece que há

uma espécie de indiferença

neste modo de olhar.

Mas esta indiferença faz-me bem.

Sinto-me talvez como um bando de pássaros

(se semelhante consciência houvesse)

e isto é parecido com um intervalo,

mais do que com um alívio.

Frieza. Neutralidade. Simples 

infância abstracta de ver sem pensar.

Coisa livre e leve se evola

da estrada que gira

com seus traços brancos no fundo negro

suas mil luzes de coisa imensa, incontável.

E a noite faz do mar 

esta brilhante obscuridade, 

caos irisado da escuridão, sensualidade. 

Não há como falar do negro 

que se afunda na escuridão.

Quem poderá pintar-te?

Pequenos pilares riscados

postes, pontes, 

quadradinhos volantes

que são as luzes trazeiras dos carros,

aparentes peças de lego

que giram como em jogos:

tantos paralelepípedos móveis

...

são as novas paisagens do abstracto.

Arde, corpo, arde.

Dança até moeres o grão de toda a angústia.

Tudo o que sofreste não faz sentido.

Há só esta coisa infantil, 

esta neutra candura das cores volantes.

Talvez a vida.